Por Valéria Credidio e Bruno Cássio – Assessoria de Comunicação do LAIS/UFRN (ASCOM/LAIS)
“A gente não sabia dos direitos que a gente tem, quando está no sistema prisional, como ter o direito ao atendimento do SUS, a qualquer momento que a gente precisar”. “O que mudou no meu olhar, é que a sífilis, eu achava que não tinha cura e a sífilis tem cura com tratamento”. As declarações são de duas internas do Pavilhão Feminino do Complexo Penal Estadual Agrícola Mário Negócio (CPEAMN), instalado em Mossoró, a segunda maior cidade do Rio Grande do Norte, distante cerca de 280 quilômetros de Natal/RN.
Essas falas foram registradas em uma das visitas feitas ao estabelecimento penitenciário para a discussão sobre o impacto do acesso à educação permanente em saúde no cotidiano das pessoas privadas de liberdade. Para se ter uma ideia da dimensão dos desafios, em nível nacional, mais de 800 mil pessoas vivem em unidades do sistema prisional brasileiro. Com a prevalência de doenças, principalmente, infecções sexualmente transmissíveis (IST) e tuberculose, a saúde em ambientes prisionais tornou-se uma emergência de saúde pública. Entre as ações necessárias para enfrentar essa situação, está o desenvolvimento de uma política de educação continuada, focada na saúde prisional.
Um exemplo bem-sucedido é o curso “Assistência à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade”, do percurso de aprendizagem “Sistema Prisional”, disponível no Ambiente Virtual de Aprendizagem do Sistema Único de Saúde (AVASUS), módulo do qual participaram as internas que abrem essa reportagem. O instrumento, elaborado por uma equipe de pesquisadores do Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde (LAIS/UFRN), faz parte de uma trilha formativa direcionada para pessoas privadas de liberdade e teve sua qualidade e eficácia comprovadas durante uma pesquisa qualitativa, feita a partir de questionários respondidos pelos matriculados.
Os resultados foram publicados, recentemente, no periódico científico Frontiers, de renome internacional e com alto fator de impacto. O artigo, intitulado “Avaliação da educação massiva em saúde prisional: uma perspectiva da atenção à saúde da pessoa privada de liberdade no Brasil”, aponta para uma perspectiva positiva quanto à formação de apenados, tanto na prevenção de doenças, com estímulo ao autocuidado, quanto nas possibilidades de atuação profissional, envolvendo pessoas privadas de liberdade, policiais penais e profissionais de saúde nesse processo.
Toda a construção da trilha formativa partiu do princípio de que a saúde prisional, situada como um direito humano, no sentido do direito universal à saúde, não pode ser menosprezada porque seus efeitos, além de afetarem essa população específica, influenciam a saúde da comunidade e, consequentemente, a saúde pública. Portanto, é essencial fortalecer a saúde integral e universal, que pode ser desenvolvida por meio de intervenções eficazes de políticas públicas destinadas a reduzir as desigualdades sociais e promover a equidade, em linha com os objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, proposta pela Organização das Nações Unidas (ONU).
De acordo com os autores do artigo, o desenvolvimento de uma política de educação continuada com ênfase na saúde prisional, baseada apenas no modelo presencial, é insuficiente e inviável do ponto de vista da relação custo-efetividade que envolve programas desse tipo em um país com as características continentais, como é o caso do Brasil. Em resposta a essa demanda, os pesquisadores apresentam como solução a proposta de formação massiva de profissionais de saúde, mas com alcance também para os privados de liberdade e policiais penais, por meio de recursos educacionais mediados por tecnologia.
Os resultados não poderiam ser melhores, conforme aponta a publicação, somente o módulo “Atenção à Saúde da Pessoa Privada de Liberdade” alcançou mais de 11.500 matrículas em todo o país (dado correspondente ao recorte temporal do artigo), sendo que um número significativo desses alunos matriculados tem vínculo direto com a Atenção Primária à Saúde na Prisão, o que segundo os estudiosos, comprova que esse modelo foi importante para dar capilaridade e escalabilidade ao curso. Só para se ter uma ideia, neste mês de setembro de 2023, mais 36 mil matriculas foram realizadas, somando os quatro módulos da trilha de aprendizagem.
De acordo com Janaína Rodrigues, uma das autoras do artigo e doutoranda da Universidade de Coimbra, o fato do curso ser ofertado no modelo virtual favoreceu a formação dos profissionais que atuam na saúde prisional em todo o Brasil, algo que seria mais difícil de se conseguir no modelo presencial. “Porém, se a matrícula no curso fosse obrigatória para todos os profissionais de saúde, principalmente, aqueles que trabalham ou desejam atuar no sistema prisional brasileiro, de fato, teria alcançado um número maior de alunos matriculados”, ressaltou a pesquisadora do LAIS/UFRN.
Ainda segundo a pesquisadora, os formuladores de políticas públicas precisam refletir sobre a necessidade de investimentos permanentes em políticas públicas de atenção à saúde no sistema prisional. Um outro ponto destacado no artigo é que a mudança nos processos de trabalho e na prática profissional, que repercutem na melhor assistência, são algo significativo e influenciaram, por exemplo, no aumento do diagnóstico de sífilis no sistema prisional. “Com informações teoricamente embasadas, as pessoas privadas de liberdade passaram a conversar mais sobre essa temática e são motivadas a participar das campanhas de testagem”, argumentou Janaína Rodrigues.
Apoio do Ministério da Justiça e do STJ
Para sensibilizar as autoridades nacionais, apresentar os dados revelados pelo estudo e mostrar a necessidade de se difundir o acesso à Trilha Formativa sobre Saúde no Sistema Prisional, na última quinta-feira (14), um grupo de pesquisadores do LAIS/UFRN participou de duas agendas estratégicas, em Brasília/DF. Na Secretaria de Acesso à Justiça (SAJU), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Janaína Rodrigues apresentou informações sobre o impacto do processo formativo na realidade de quem atua com saúde nas prisões.
O diretor executivo do LAIS/UFRN, Ricardo Valentim, os pesquisadores do laboratório, Juciano Lacerda e Andrea Pinheiro, e a professora da educação prisional, vice-coordenadora da Rede de Apoio a Egressos do Sistema Prisional (RAESP/RN), Laysa Glícia Nunes, também participaram da reunião que contou com a coordenação do secretário de Acesso à Justiça, Marivaldo Pereira, e da diretora de Promoção de Direitos da SAJU/MJSP, Roseli Faria, além de representantes da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN/MJSP) e do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).
A representante do Ministério da Justiça e Segurança Pública se mostrou entusiasmada com a possibilidade de fomentar parcerias para dar mais visibilidade à iniciativa do LAIS/UFRN e indicou como vai agir para envolver mais órgãos do Governo Federal: “buscando construir, junto com outros ministérios, aqui na Esplanada, uma situação em que a gente pode dar mais escala a esse projeto, que já deu ótimos resultados no Rio Grande do Norte e a gente pode espalhar para outras regiões do país”, ressaltou Roseli Faria.
Para Marco Castilho, que atua na Diretoria de Defesa dos Direitos Humanos, do MDHC, a Trilha Formativa, disponibilizada no AVASUS, atende a uma pauta levantada com frequência por quem convive com essa realidade. “É uma incidência forte, dentro da Diretoria, a temática de pessoas privadas de liberdade e existe também uma preocupação com a formação, sobretudo de agentes de segurança. Então, eu acho que há uma intersecção entre a Plataforma e os interesses da Diretoria”.
Do Palácio da Justiça, Janaína Rodrigues e Laysa Glícia Nunes seguiram para a sede do Superior Tribunal de Justiça, onde representaram o LAIS/UFRN em uma reunião com a diretora do Centro de Formação e Gestão Judiciária (CEFOR/STJ), Mariana Camargo Rocha. Sobre essa iniciativa, a diretora do CEFOR/STJ afirmou: “vocês trouxeram elementos que o STJ não consegue receber com essa riqueza de informações. Em termos de contribuição do STJ, eu acho que o compartilhamento de cursos é um caminho inicial que a gente pode fazer. A gente tem um portal de EaD do STJ, que ele tem um Canal, o Conexão Cidadã, que faz sentido a gente manter a interface com o público externo do STJ”.
“Com isso, a gente pode promover a atenção à saúde no Sistema Prisional, levando a trilha para os profissionais de saúde, para os policiais penais e para os privados de liberdade”, celebrou Janaína Rodrigues, depois dos encontros.
Como citar o artigo
Valentim Janaína L. R. S., Dias-Trindade Sara, Oliveira Eloiza S. G., Romão Manoel H., Fernandes Felipe, Caitano Alexandre R., Bonfim Marilyn A. A., Dias Aline P., Gusmão Cristine M. G., Morais Philippi S. G., Melo Ronaldo S., Fontoura de Souza Gustavo, Medeiros Kelson C., Rêgo Maria C. F. D., Ceccim Ricardo B., Valentim Ricardo A. M. Evaluation of massive education in prison health: a perspective of health care for the person deprived of freedom in Brazil. Frontiers in Public Health. V.11. 2023.
Link de acesso
https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpubh.2023.1239769