Valéria Credidio/ Assessoria de Comunicação do LAIS/UFRN

Em 2024, os recursos de emendas parlamentares somaram R$ 45,8 bilhões. Entre 2014 e 2024, esse volume total aumentou 321% no orçamento da União e 383% no orçamento do Ministério da Saúde. Para discutir o que representa esse crescimento, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com a Diretoria de Estudos Sociais e o Ministério Público Federal (MPF) promoveu o seminário “Emendas Parlamentares ao Orçamento Federal do SUS”, na última semana, em Brasília.

Entre os palestrantes, nomes importantes de órgãos como a Procuradoria-Geral da República e do Ipea. O Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde (LAIS) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) também estava entre os palestrantes, sendo representado pelo pesquisador Gleyson Caldeira, doutorando no Programa de Pós-graduação em Engenharia Elétrica e de Computação (PPgEEC) da UFRN.

Para o pesquisador do LAIS/UFRN, o orçamento secreto criou um ambiente favorável a distorções e assimetrias na distribuição de recursos públicos, sem critérios transparentes em relação à alocação dos recursos públicos. O pesquisador questionou a capacidade dos municípios de executar os serviços após receberem recursos via emendas. “O recurso chega, mas há profissionais suficientes para realizar os procedimentos? Como o município executa a ação se não pode usar o dinheiro para contratar pessoal?”

Caldeira citou casos de municípios que registraram 363 vezes o mesmo procedimento para cada um dos seus cidadãos, tudo isso em apenas um ano, como por exemplo a aferição de pressão arterial. No total, o pesquisador identificou mais de 200 mil procedimentos cuja quantidade supera em mais de 50% a população local, configurando indícios de irregularidades. 

Inflar artificialmente a quantidade de procedimentos não gera, de imediato, aumento de repasses, mas eleva o limite futuro de recursos que o município pode receber. “Ficou clara a conexão entre o inflar de procedimentos e o objetivo final: ampliar o teto potencial de transferências em anos seguintes”, afirmou Caldeira.

Para entender
O Seminário “Emendas Parlamentares ao Orçamento Federal do SUS” é resultado de uma parceria entre a Diretoria de Estudos Sociais e o Ministério Público Federal. O acordo de cooperação técnica entre Ipea e MPF está estruturado em três eixos: financiamento, judicialização e dados públicos do SUS.

Para o subprocurador-geral da República, Oswaldo José Barbosa, o acordo permite ao MPF solicitar ao Ipea estudos específicos que apoiem suas ações. “Isso representa um grande avanço para o Ministério Público Federal”, afirmou.

Barbosa chamou atenção, ainda, para os efeitos negativos da atual lógica de distribuição das emendas parlamentares. De acordo com o subprocurador, a forma como esses recursos são direcionados tem prejudicado a regionalização da saúde. “O dinheiro chega carimbado. O deputado quer que sua emenda seja aplicada no hospital X, quando às vezes seria muito mais adequado direcioná-la a outra necessidade do município”, disse.

A presidenta do Ipea, Luciana Servo, alertou que o uso crescente das emendas parlamentares para definir a estrutura das políticas públicas, especialmente na atenção primária à saúde, tem gerado disfunções no sistema. Quando esses recursos passam a orientar a organização da política, o resultado é um modelo fragmentado e pouco eficiente. 

Para ela, o país precisa redefinir o papel das emendas, recuando no ritmo de expansão desses recursos para evitar impactos negativos em áreas estruturantes. Ela ressaltou a importância da parceria com o Ministério Público Federal, que oferece uma visão ampla sobre a política e o funcionamento do sistema. “O Ipea produz evidências para orientar políticas públicas, mas, para que essas informações realmente influenciam as decisões, é preciso uma rede muito maior do que uma instituição de pesquisa. Por isso, vemos essa parceria com ótimos olhos”, afirmou.

Emendas parlamentares
O debate sobre as emendas parlamentares ganha urgência diante do forte aumento no volume de recursos, o que tem provocado desequilíbrios no financiamento das políticas sociais. Em 2024, esses recursos somaram R$ 45,8 bilhões. Entre 2014 e 2024, o volume total de emendas aumentou 321% no orçamento da União e 383% no orçamento do Ministério da Saúde. 

Esse avanço se reflete também no financiamento do piso federal da saúde. A participação das emendas, que era de 3,1% em 2014, chegou a 11,4% em 2024, depois de atingir 12,6% em 2023. Apenas nas despesas de Piso da Atenção Primária em Saúde (PPS), o crescimento acumulado foi de 387% no período, alcançando R$ 24,8 bilhões em 2024.

Uma consideração importante sobre essas questões é que as emendas não adicionam novos recursos ao SUS, como parte da população acredita. “Elas representam apenas outra forma de alocar um orçamento que já é pré-definido para ações e serviços públicos de saúde”, explicou Fabíola Sulpino Vieira, especialista em políticas públicas e gestão governamental e coordenadora da área de saúde na Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc/Ipea). 

O resultado é que, ao longo da década, as emendas passaram a ocupar uma fatia crescente do financiamento federal do SUS. Em 2024, 45,4% da despesa discricionária do Ministério da Saúde destinada ao piso foi definida por emendas.

Do ponto de vista territorial, Norte e Nordeste receberam 52% dos recursos via emendas em 2024. Mas não necessariamente os repasses estão alinhados às necessidades regionais. A destinação dos recursos não segue a Programação Geral de Ações e Serviços de Saúde (PGASS) e não considera critérios legais de rateio, resultando em desequilíbrios significativos entre municípios. Além disso, 92% dos repasses vão para custeio, e o valor recebido por um mesmo município pode variar substancialmente de um ano para outro, dificultando o planejamento local.

A pesquisadora explicou que ainda há perguntas importantes sem resposta. Uma delas é o impacto das emendas no gasto local em saúde e nos indicadores de saúde da população. Para isso, o Ipea está conduzindo um estudo em cooperação com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), previsto para ser publicado no próximo ano. “Temos uma agenda de pesquisa enorme pela frente”, concluiu.

Para o técnico de planejamento e pesquisa José Aparecido Ribeiro, a destinação regional dos recursos por emendas não garante, por si só, que as necessidades reais de cada município sejam atendidas. Um município vulnerável ou localizado em uma região mais pobre pode até aparecer como destinatário adequado quando analisado de forma agregada, mas isso não significa que o recurso esteja financiando a ação de saúde mais necessária para aquela população. “O município pode receber o dinheiro, mas não necessariamente para aquilo que ele mais precisa. O planejamento setorial e a identificação das demandas locais são fundamentais”, afirmou.

Filipe Cavalcanti, técnico de planejamento e pesquisa na Disoc, apresentou evidências de que as emendas parlamentares destinadas à saúde passaram por uma mudança significativa de perfil nos últimos anos. Antes concentradas em investimentos, as emendas agora são majoritariamente direcionadas a despesas correntes, especialmente para a ação de incremento ao custeio.

O estudo foi baseado em um mapeamento das portarias do Ministério da Saúde que regulamenta e autoriza repasses de emendas, cruzando informações com bases do Fundo Nacional de Saúde. Entre 2019 e 2024, mais de 745 portarias foram examinadas. 

As bases de dados do Ministério da Saúde não informam quais entidades são beneficiadas pelas emendas. Mas o levantamento identificou que uma parcela relevante do incremento ao custeio da atenção especializada tem sido destinada ao setor privado com fins lucrativos. No total do período analisado, 34% desses recursos foram destinados a entidades privadas estaduais e 28% às municipais. A concentração é especialmente alta nas regiões Sul e Sudeste. Para o professor Ricardo Valentim, diretor executivo do LAIS/UFRN, esse pode ser um exemplo de distorção na aplicação dessas emendas parlamentares, pois neste caso podem está sendo induzido o aumento das assimetrias regionais, uma vez que são destinados recursos por indicação dos parlamentares, aspecto que subverte a própria lógica da condução das políticas pública de saúde, que deve observar também como critério a equidade no acesso à saúde.    

Entre 2019 e 2024, as entidades que mais receberam recursos de incremento ao custeio da atenção especializada foram: Santa Casa (R$ 2,06 bilhões), Fundação Pio XII (R$ 0,99 bilhão) e APAE (R$ 0,24 bilhão), além de outras instituições que somam R$ 7,09 bilhões.

Para o pesquisador Filipe Cavalcanti, o avanço das emendas tem aprofundado a fragmentação da decisão orçamentária. “Em vez de um projeto nacional de saúde coordenado pelo Ministério, com critérios objetivos para estados e municípios, há uma pulverização de negociações individuais entre parlamentares e gestores locais”, disse. 

Cavalcanti apontou ainda sérios problemas de transparência. Não há informações públicas consolidadas sobre planos de trabalho e metas das emendas de incremento ao custeio, nem sobre as entidades privadas beneficiadas. Além disso, parte das despesas foi executada sem detalhamento do destinatário no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP). 

Essas lacunas explicam por que parte da imprensa passou a se referir às emendas como “Pix da saúde”, dada a falta de informações que permitam fiscalizar sua aplicação.

Ministério Público Federal
O procurador da República Fabiano de Morais afirmou que o orçamento público brasileiro precisará, daqui em diante, ser pensado considerando o peso das emendas parlamentares.  “O desafio é fazer com que as emendas se adequem aos objetivos do Sistema Único de Saúde (SUS). Esse será um dos grandes temas para o futuro”, ressaltou.

Dois elementos são fundamentais para o uso adequado desses recursos: transparência e rastreabilidade. É necessário saber claramente de onde sai cada recurso e onde ele é aplicado, uma exigência que também é crucial para o Ministério Público Federal (MPF) exercer sua função de fiscalização. “Precisamos dessas informações tanto para identificar eventuais desvios quanto para assegurar que o dinheiro seja aplicado corretamente”, explicou.

Ele observou que, nos últimos anos, houve avanços na tentativa de organizar melhor as emendas da saúde. O Ministério da Saúde passou a oferecer aos parlamentares uma espécie de cardápio de projetos prioritários, buscando reduzir a aleatoriedade na destinação dos recursos e alinhá-los a critérios técnicos. Além disso, a criação de contas específicas para cada emenda aumentou a rastreabilidade, especialmente em relação às organizações da sociedade civil.

Transparência e rastreabilidade não são apenas boas práticas administrativas, mas uma exigência constitucional para o uso das emendas. O procurador lembrou que parte dessa fiscalização hoje está concentrada no Supremo Tribunal Federal (STF), mas reforçou que o MPF continuará atuando para garantir que não haja “zonas cinzentas”, lacunas em relação à transparência, na aplicação dos recursos. 

O procurador regional da República Fábio George Cruz da Nóbrega ressaltou que o sistema brasileiro de emendas parlamentares individuais é único no mundo. Essa lógica se agravou com a criação das transferências especiais, conhecidas como emendas PIX, que permitem aos parlamentares transferir recursos diretamente para estados e municípios sem necessidade de projeto, convênio ou estudo técnico. “O parlamentar doa o recurso, ponto. E o município pode usá-lo quase para qualquer finalidade”, explicou.

Segundo Fábio, a soma desses mecanismos levou o volume total das emendas parlamentares a R$ 50 bilhões em 2024, com previsão inicial de chegar a R$ 58 bilhões em 2025. Ele destacou que metade dos investimentos federais já é definida pelo Legislativo.

Assim, o orçamento federal está cada vez mais engessado: 92% das despesas são obrigatórias, e os 8% restantes podem desaparecer até 2029 caso não haja mudança na dinâmica das emendas. “Em nenhum momento se fala em reduzir emendas parlamentares”, observou.

Fábio destacou que estudos recentes mostram que grande parte dos recursos tem sido direcionada para municípios que já apresentam cobertura quase total de atenção básica, sem provocar melhorias significativas na qualidade do serviço ou no atendimento à população. Em muitos casos, os municípios que recebem essas transferências passam a reduzir seus próprios investimentos em saúde básica, realocando verbas para áreas menos prioritárias.

O quadro pode se agravar, segundo ele, se o Supremo Tribunal Federal validar a possibilidade de os recursos federais serem usados para pagamento de salários de profissionais de saúde, o que tende a estimular ainda mais a substituição de gastos locais por verba federal.

A atual sistemática das emendas parlamentares provoca uma interferência direta do Poder Legislativo na condução e execução das políticas públicas de saúde, um papel que a Constituição Federal destina prioritariamente ao Poder Executivo. Essa dinâmica, contudo, cria uma assimetria de responsabilidade, pois os membros do Legislativo, embora influenciam diretamente a aplicação dos recursos, não são responsabilizados por eventuais problemas ou falhas na execução. Assim, a imputação de responsabilidade recai exclusivamente sobre os agentes do Poder Executivo, conforme destaca o professor Ricardo Valentim.