Ricardo Valentim
Coordenador do Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde (LAIS/UFRN)
Coordenador do RegulaRN

Lyane Ramalho
Pesquisadora do Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde (LAIS/UFRN)
Coordenadora de Implantação do RegulaRN  

Foto: Cintia da Hora


A pandemia tem causado um conjunto de crises em nosso país, as quais não se relacionam diretamente com o Sars-CoV-2, porém têm, no final das contas, um grande poder de virulência, pois atinge todas as classes sociais, com igual furor e devastação. 

Ao longo desses cinco meses, essas crises vêm provocando estragos, os quais atuam negativamente na desarticulação entre os poderes. Tais processos têm gerado confusão nas comunicações oficiais, movendo guerras de narrativas, das quais a “politicagem oportunista” se aproveita e se utiliza para confundir e produzir ilusões para sociedade. Muitas vezes, o propósito é somente a busca de votos, e isso se configura como uma vergonha, uma pena!

É certo que tudo que estamos vendo acontecer e que se relaciona com tais fatos são condutas ou atitudes desnecessárias e certamente não faz parte do objetivo prioritário para vencer a covid-19, doença que, lembramos, ainda é um grande problema de saúde pública no mundo, no Brasil. E no nosso estado, o Rio Grande do Norte, não é diferente.

Então, por que a solidariedade, em um momento, literalmente, de “guerra”, não é a palavra e a atitude a ser reproduzida? Por que a cooperação entre os entes que podem fazer a diferença na gestão da crise não é estimulada e reconhecida? Por que é mais fácil encontrar o “erro” e apontar o “deslize” entre aqueles que contribuem e empurram o seu estado para frente? Será que temos um movimento coordenado para criação de problemas, quase que diariamente, os  quais fogem do contexto principal da luta e do enfrentamento contra o novo coronavírus? A quem realmente interessa tumultuar e solapar as ações estratégicas que contribuem realmente para salvar vidas? É preciso parar e refletir um pouco.

O Rio Grande do Norte (RN) é destaque positivo na mídia nacional há pelo menos quatro dias, por ter baixado, recentemente, o número de óbitos e de casos confirmados. A tal da média móvel agora está na boca do povo, ela também aponta uma redução de -43% dos óbitos no RN nos últimos sete dias. Isso, de fato, deve ser celebrado. Afinal de contas, diante de uma guerra com milhares de óbitos e de famílias ainda em luto, alguma esperança é apontada – uma luz no final da “peste” -, mesmo que isso não signifique um “liberou geral” para a vida que tínhamos antes da pandemia. Que fique bem claro!

Contudo, o maior destaque do RN não é para esses indicadores que são voláteis e dependem muito do comportamento de cada um de nós da sociedade. Em meio a essa pandemia, o Rio Grande do Norte, o nosso estado, conseguiu fazer algo realmente diferenciado de todo o país e do qual todos deveriam se orgulhar!  De maneira totalmente solidária, voluntária e dialógica, conseguiu organicamente instituir um modelo de cooperação técnica e científica entre o Estado, a Universidade e os Ministérios Públicos. Esse será, provavelmente, o maior legado para o RN pós-pandemia, pois, no ambiente atual de crise, é realmente algo inovador e socialmente relevante.

Nesse contexto, dentre várias ações, cabe descrever o RegulaRN, um projeto desenvolvido pelo Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde (LAIS/UFRN) com o apoio do Complexo Estadual de Regulação (CER) da Secretaria de Saúde Pública do Rio Grande do Norte (SESAP/RN) e com uma atuação proativa e efetiva dos Ministérios Públicos (MPRN e MPF/RN). Esse projeto mudou a trajetória da covid-19 em cada município norte-rio-grandense, com isso pode ter mudado a vida de um familiar nosso. Não se tem conhecimento de algo tão inovador e de tão grande impacto social que tenha sido feito diante do caos e que tenha, em tão pouco tempo e de maneira tão célere, atingido objetivos que antes jamais tinham sido alcançados. Não é à toa que o RN nunca antes da pandemia conseguiu ter um sistema de regulação efetivamente operacional, aplicado e implantado.

O RegulaRN democratizou o acesso aos serviços de saúde, pasmem, em plena pandemia, quando contribuiu com a total transparência e a equidade para o acesso a um leito covid-19 SUS em todo o estado do RN. Esse sistema está muito além de ser somente uma tecnologia, pois ele avança no campo da justiça social e da promoção da equidade – aspectos basilares em um estado democrático de direito. O RegulaRN está promovendo a mudança cultural e o aprimoramento de processos de trabalho no âmbito do SUS, acabando com vícios que “oxidam” o Sistema Único de Saúde (SUS) há mais de 20 anos. E, certamente, nada disso teria sido possível, pelo menos, não na sua totalidade, sem a grande parceria do Ministério Público Federal que, diuturnamente, tem sido vigilante e também gestor de ações de mudanças a partir dos diagnósticos feitos no sistema.

Um dos grandes problemas do SUS está justamente na regulação. Desenvolver um sistema que pudesse realmente atuar nesse campo não é algo simples, primeiro, pela alta complexidade do objeto, fato esse que foi vencido pela qualidade técnica dos pesquisadores do LAIS/UFRN e da equipe do CER/SESAP-RN. Segundo, pelos vícios herdados ao longo da história da regulação do SUS no RN. Há quem fale que há “serviços de saúde que têm donos”, aspecto esse que está sendo vencido pela cooperação e parceria com os Ministérios Públicos (MPRN e MPF/RN). A beleza desse projeto e os bons resultados até agora evidentes se instituem nesta perspectiva: a da cooperação técnica, da transparência e da vontade de promover o bem comum. 

Nesse campo da cooperação técnica, é importante destacar a atuação do Procurador Federal, Fernando Rocha, que soube ouvir e acreditou na proposta do RegulaRN. Ele conseguiu compreender a amplitude do projeto e identificou os benefícios sociais a serem alcançados, principalmente na indução das políticas públicas de saúde frente à pandemia – isso realmente não é algo fácil, não é qualquer um que consegue entender realmente esse processo. As ações do Procurador Federal estão sendo fundamentais na incorporação dessa tecnologia de regulação em todo o RN.  

Quando instituições sérias se reúnem para atuar em função de políticas públicas, com cada uma se esforçando dentro de sua dimensão e expertise, os resultados são realmente muito bons. A experiência que está sendo vivida durante a pandemia, aqui no RN, mostra isso de maneira muito clara e patente.

Neste momento, não é necessário tentar desqualificar o bom trabalho realizado, é preciso destacar o que foi feito de positivo, pelas instituições e por seus atores, os quais estão atuando diuturnamente para transformar uma realidade que sempre foi caótica e propositalmente sucateada. 

Atualmente, o estado e os municípios do RN possuem uma rede assistencial regulada, automatizada e transparente, a partir de uma visão regionalizada da saúde, algo nunca implementado no Brasil. Isso está sendo viável por meio do RegulaRN, que é fruto de uma ação articulada; a sua abrangência e sua eficiência já produzem uma disrupção nos modelos informais e opacos anteriormente praticados, já sendo possível perceber a mudança cultural desse projeto em todo o estado. 

Milhares de vidas foram salvas; para ser mais preciso, até agora já são mais de 1.830 registradas. Todavia, o legado é ainda muito maior. O sistema, já em execução, também está sendo aprimorado para o cidadão que precisa, por exemplo, de uma cirurgia qualquer ou que há muito tempo tem sua tomografia solicitada, porém, sem saber quando irá realizar o exame. Nesse sentido, o sistema conseguirá dar acesso a todos os tipos de leitos – não apenas os da covid-19, aos exames e procedimentos médicos – e, assim, de forma transparente e equânime, irá garantir que o mais pobre cidadão possa ter acesso à saúde, conforme previsto em nossa constituição.

Esse projeto, que nasceu diante de uma pandemia, é para fazer o Sistema Único de Saúde funcionar, porque esse Sistema é de todos e exige que muita gente lute por ele. É preciso aprender a valorizar o SUS e valorizar também quem trabalha por ele!

O Rio Grande do Norte terá muitos legados depois da pandemia, que tal priorizar os bons, tal como os advindos desses grandes projetos (RegulaRN e FiscalizaRN – plataforma de fiscalização dos gastos públicos com a covid-19), que estão contribuindo para acabar com os “velhos vícios” do sistema de saúde aqui no estado? Em meio ao caos criado pela pandemia, se não existisse o RegulaRN, como a sociedade saberia quem estaria indicando os pacientes para um leito de UTI? Em um estado que ainda há a péssima prática do “clientelismo político”, que ainda gira em torno SUS e da “ambulancioterapia”, isso seria, no mínimo, temeroso.    

O RN terá como legado, para além do RegulaRN e também do FiscalizaRN, um modelo de cooperação técnica que deu certo e deve ser aplicado sempre que houver necessidade de projetos de Estado, e não somente de uma gestão, quando for necessário fazer algo permanente e, portanto, não efêmero, como muitas das coisas “eleitoreiras” do nosso país, haja vista o que já está ocorrendo na busca dos votos para as eleições municipais. Ficará também a parceria profícua entre duas das maiores instituições do estado, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte e o Ministério Público Federal, bem como os primeiros resultados dela: o RegulaRN e o FiscalizaRN.

Estamos somente no início; muita coisa ainda poderá vir em benefício do RN!